Tão Longe Tão Perto


“Me diz o que é feminina?”*
24/01/2010, 21:38
Filed under: Me diz o que é feminina?

Piu piu piu piu. Toca a campanhia no domingo. É Shruti, filha adolescente do Mr. Babu. Veio bater papo e contou que a vizinha de baixo, que estava com o maior barrigão, está toda feliz porque deu a luz a um menino. Por aqui, os médicos são orientados a não revelar o sexo da criança durante a gestação para evitar abortos seletivos. Como no clube do Bolinha, nas famílias mais tradicionais, meninas não são bem-vindas. É uma questão de status. Se vierem, serão criadas com muito carinho. Mas o que dá ibope mesmo é ter filho homem, que ainda economiza o ouro do dote.

A vizinha ainda está no hospital e de lá segue pra casa da mãe, onde fica até o dia da cerimônia da escolha do nome do bebê. Só depois volta pra casa da sogra, que mora aqui no predinho construído por Mr. Babu, o senhorio mais cuidadoso do pedaço. Tanto que planejou cada um dos quatro apartamentos segundo o Vaastu, o sistema Hindu de arquitetura e design, usado nos projetos dos templos e resgatado em construções modernas. O Vaastu calcula as proporções dos ambientes com o intuito de proporcionar  bem-estar físico, espiritual e potencializar saúde, prosperidade e felicidade pra quem ocupar o espaço. Algo paralelo ao Feng Shui chinês. Shruti acha que o Vaastu pode ter influenciado na defininição do sexo do bebê.

Ser menina por aqui não é das tarefas mais fáceis. Também vim de uma cultura patriarcal que oprime, pressiona, violenta e desvaloriza suas mulheres ora sutil, ora explicitamente. Mas nasci numa geração que flexibiliza a tradição, que herdou muitas conquistas, mas que ainda tem muito o que fazer para diminuir a diferença de valor, remuneração, liberdade e principalmente de poder entre homens e mulheres.

E vim de uma família recheada de mulheres fortes e decididas. E tem particularmente minha mãe, que sempre equilibrou com força e delicadeza a panela e o panelaço, a preparação do pão de queijo e a atuação política, além de muitas outras batalhas femininas bem complicadas. Nos anos 80, lembro de acompanhá-la em reuniões que resultaram na fundação do Conselho dos Direitos da Mulher. E tenho uma imagem dela chegando ensopada, com uma flor no cabelo, da manifestação pelas Diretas Já. Então, a lente do feminismo esteve e continua sempre disponível para desnaturalizar a ordem das coisas e repensar como o mundo pode ficar melhor.

Só que não adianta trazer explicações nem soluções universalizantes pro lado de cá. Cada cultura deve encontrar suas ferramentas pra buscar esse equilíbrio com legitimidade. Moralismos à parte e bem longe, tenho repensado, por exemplo, até que ponto vestir ou despir é que mede o grau de questionamento de valores tradicionais, ao ver “no oriente” mulheres que não tiram o véu para se engajarem num debate questionador e politizado.

Na Índia, o feminino é mais uma das esferas em que o contraditório está tão evidente que nos arrebata e nos desnorteia, assim como acontece em relação à espiritualidade, à condição socioeconômica, à hierarquia, à relação com o meio ambiente…  O próprio hinduísmo, berço da tradição deste país, narra o que acontece por meio de deuses e deusas poderosíssimas. Mas adorar as deusas no templo não garante necessariamente respeito à mulher entre quatro paredes. Ou pode garantir um tipo de respeito conservador, já que os hindus são ensinados a “ver em toda mulher a sua mãe”, como me explicou um colega da ioga, que já avisou à namorada que com ela não pode casar. A geração entre 20 e 30 anos já não sabe mais o que dá certo e vive numa panela de pressão: lá dentro, valores tradicionais que exigem, entre outros rituais, o casamento cedo com alguém da mesma casta, formação, religião, comunidade. Os pais têm um papel muito forte para “facilitar” esse processo, com direito a negociações com famílias amigas e muita chantagem emocional. Pela válvula de escape, as meninas e meninos escutam o apito de uma suposta liberdade de escolha, a chance de se envolver por amor e viver um pouco do conto romântico dos musicais de Bollywood. O emprego (muitas vezes na indústria de tecnologia) amplia a fresta que dá acesso ao mundo lá fora, proporciona autonomia e faz com que possam cozinhar os pais por mais tempo até tomarem uma decisão. Na prática, casos de fuga, divórcio, promessas não cumpridas tornam-se cada vez mais frequentes, gerando insegurança, decepção e estigma. Por outro lado, movimentos de resistência buscam transformar a tradição, não para adotar cegamente o modo de vida ocidental, até porque esse aí não contribui muito para uma vida mais harmônica e equilibrada, mas para minimizar o estigma e tentar buscar a felicidade dessas mulheres dentro de sua própria cultura. Um exemplo é a Associação de Mulheres Independentes e Fortes (Association of Single Strong Women), que desde o ano 2000 intervém no âmbito público e privado pelo direito (aposentadoria, trabalho, etc ) e inclusão social das viúvas, separadas e divorciadas, que na Índia somam um total de 36 milhões de mulheres, número equivalente à população do Canadá. Isso porque as estatísticas não incluem as que nunca se casaram ou foram simplesmente abandonadas, sem registros oficiais. O grupo garantiu, por exemplo, que uma viúva participasse sim da cerimônia de casamento do seu filho, de sári colorido e bindi vermelho na testa, a despeito da família, que tentava impedi-la por não considerar auspiciosa sua presença no ritual.

São mulheres fortes que seguem reinterpretando sua tradição em busca de felicidade. Pode estar aí a esperança das novas gerações aprenderem que a resposta pro que é feminino, “termina na hora de recomeçar”*.

*Trechos da música Feminina, da Joyce.




14 Comentários so far
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Querida. Como sempre muito interessante. Acho que voce ia gostar de ler a tese do chris. O abstrato é mais ou menos isso

“In this dissertation, I take aim at the typical anthropological routine of criticizing universalist
assumptions in social theory by contrasting them with non-Western emic models. I do so by
following up on one recent instance of this practice, which has been heralded as a testament to
what anthropology can still offer to critical social theory: Mahmood’s work on the Islamic
piety movement in Egypt, and her claim that the normative subject of liberal feminist theory
needs to be denaturalized, because the women involved in the piety movement hold a self-
model that is incommensurable with secular-liberal assumptions about action being structured
by innate desires for autonomy and freedom. By analyzing ethnographic data on Egyptian
Muslim women through the lens of a combination of non-determinist cognitive theories, I
show that in order to understand the lives of pious women much can be gained from keeping
psychological predispositions for autonomy in mind.”

Isso é claro do ponto de vista cognitivo, que assume que tenhamos uma tendencia a “autonomia da mente”. Como sempre ficam as eternas perguntas de como esses sistemas tao distintos se produzem de constraints iguais…. enfim..
saudade.

You are doing such a great job com esse blog…. serio mesmo… beijos

Comentário por julieta falavina

Legal, vou pedir o trabalho pra ele. Valeu! Bjo.

Comentário por Gabriela Goulart Mora

Texto maravilhoso! Estamos em sintonia mesmo, pensando e (re)pensando o feminino, a luta das mulheres modernas e esse choque da tradição X inovação. É muito enriquecedora essa reflexão, e adorei saber da Associação de Mulheres Independentes e Fortes!

Comentário por Flavia

Flávia, a gente tem muito o que conversar! Que bom ter vc por perto! Bjo.

Comentário por Gabriela Goulart Mora

É pensar o mundo em feminino. Adorei sua reflexão!
Beijos de saudade

Comentário por Grazi

Bóra trocar mais msgs sobre o feminino por email. Este lugar instiga a gente a pensar nisso o tempo todo! Bjos.

Comentário por Gabriela Goulart Mora

Fulgurante! Parabéns!

Comentário por kk

Valeu, KK! Beijo a todos aí!

Comentário por Gabriela Goulart Mora

acho que eu só conhecia a índia do Slumbdog Milionaire. Eu estou emocionada com a sua…
beijo muito feliz pela sua experiência!

Comentário por Taís(inha)

Bem-vinda, Taisinha! Venha sempre (no real e virtual). Bjo.

Comentário por Gabriela Goulart Mora

Gabi, adorei a experiencia, as reflexoes e os textos que condensam tudo. Tenho vivido coisas parecidas e outras distintas aqui na Austria. Ate pensei em escrever um blog chamado “choque cultural”! Risos… Amei o pensar sobre o feminino e o nosso lugar no mundo, com ganhos e perdas. Mas… Quero ouvir mais de você! Beijos!

Comentário por Fabiana

Obrigada pela visita! Manda ver nesse blog que vou ser sua leitora! E se animar passar uma temporada por aqui, a casa tá aberta! Bjo.

Comentário por Gabriela Goulart Mora

Oi Gabi,

te conheço há tempos já, de amigos comuns como Marluce. Adorei conhecer teu blog, e tuas experiências. MUITO inportante textos como o seu!
E um prazer e uma vitória saber da Associação de Mulheres Independentes e Fortes. O mundo feminino é mesno uma coisa tao potente e singela ao mesmo tempo!
Adicionadíssima e acompanhando!
Um beijo bem mulherzinha!
Cecilia

Comentário por Cecilia

Que delícia de recado! Também vou acompanhar seu blog! Beijão, mulher!

Comentário por Gabriela Goulart Mora




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